Há quantos anos é que a arbitragem entrou na sua vida e porquê?
Eu quis tirar o curso em 1993, no entanto era a única mulher aqui na Régua. Nunca tive muito jeito para jogar futebol e na altura não havia muitas opções de desportos para mulheres.
Falei com um árbitro daqui, mostrei o meu interesse e na altura o que ele me disse é que deveríamos ser mais raparigas para eu não ser a única. Em 1994, ou seja há 26 anos, houve um grupo de 5 raparigas, todas estudantes de desporto na escola secundária que resolvemos fazer o curso. Ficamos três com o curso, a Catarina, a Berta e eu e começamos a apitar as três.
Foi um processo difícil na fase inicial?
Foi, muito difícil. As raparigas agora não fazem ideia o que nós passamos. Para além dos insultos, que eram muitos, também o facto das pessoas não estarem preparadas para isso.
Na altura tinha 18 anos, era uma miúda, pequenina, como sempre fui (risos), muito inexperiente. Quem joga futebol sabe as manhas e nós nunca jogamos sequer, por isso foi muito complicado.
Estar no interior norte também não ajudou na época, nós fomos pioneiras e vivemos muitas aventuras. Só quem gosta mesmo e tem muita resiliência é que consegue aguentar o que nós aguentamos numa fase inicial.
Estive para desistir é verdade, entretanto surgiu o convite para ir para a Federação e nós não quisemos perder essa oportunidade, isto já quatro anos depois, em 1999.
Sentiu com essa entrada para a Federação, um papel mais importante a desempenhar do que somente o de árbitra?
Tínhamos objetivos porque nós chegamos a um ponto em que só fazíamos camadas jovens, não nos davam confiança para apitar seniores. A nossa carreira estava estagnada, tinha acabado o meu curso superior e não havia objetivos a cumprir o que nos vai desmotivando.
Com esse convite sentimos uma maior motivação, eu a Berta e a Catarina, e fomo-nos apoiando umas às outras. Aí surgiram outros objetivos de poder apitar equipas mais conhecidas como o Boavista, já não tinha nada a ver com a distrital, foi esse rebuçadinho que me fez continuar. Era uma fase em que precisava de ter algo aliciante onde me agarrar porque tinha acabado o curso e começava a pensar em constituir família.
Ao fim de todos estes anos chegas ao topo da carreira na arbitragem feminina. Era um objetivo?
Todos os anos, todas as épocas o objetivo é dar o melhor, sempre. Eu não queria acabar a minha carreira no fundo da tabela, tive algumas épocas más no fundo da tabela e dizia para mim, “não, eu sou melhor do que isto”.
Estou numa fase de acabar a carreira, os 45 anos são o limite, e queria acabar bem, queria acabar no topo, no melhor das minhas capacidades, também por uma questão de autoestima e de valorização pessoal, até porque estou a fazer algo que acredito que faço bem.
É claro que isto dá muito trabalho, muita gente não imagina. Nós treinamos três vezes por semana, temos que estudar, temos formações e isto exige muito da nossa vida pessoal, tem que se gostar.
Culminar tudo isto com uma subida à categoria máxima é excelente, estou muito feliz.
Mas, neste momento, como árbitra, não pode ambicionar entrar, por exemplo, no Estádio de Alvalade para apitar um Sporting-Porto em seniores masculinos?
Masculino não porque a nossa categoria só nos permite fazer os campeonatos femininos, em todos os escalões, juniores masculinos de 2ª divisão e o Campeonato Nacional Seniores. Todos os anos há um regulamento que determina que tipo de jogos podemos fazer, tudo o que seja acima do CNS masculino não podemos fazer.
Sente que o jogador homem tem mais respeito pela árbitra mulher?
Gostava de ver uma colega a fazer a primeira categoria masculina, já não é para mim mas espero ver isso e, em termos de respeito acho que sim. Os jogadores já se habituaram a ver as mulheres.
Desde que houve uma árbitra francesa, a Stéphanie Frappart, que chocou o mundo ao ser nomeada para a Supertaça Europeia, as pessoas vão-se habituando à ideia.
E os insultos? Sente que ele é dirigido ao árbitro, figura do jogo, ou é especialmente dirigido à árbitra?
Há machismo sim, mais na bancada do que no terreno do jogo. Continua a ser fácil dizer “vai lavar a loiça”.
Já ouviu isso alguma vez?
Sim, muitas vezes. São muitos anos a ouvir essas coisas.
E consegue-se ignorar?
Se eu ligasse a tudo que ouvi não estava na arbitragem há 25 anos (risos), o primeiro ano foi terrível.
Lembro-me de ter um jogo em que éramos três mulheres e eu estava de assistente, na linha, onde se ouve mais, e eu ouvi tanta coisa que, se eu não abandonei naquela hora mentalizei-me que não iria abandonar mais.
Se lhe pedisse para recordar o melhor e o pior momento da carreira, que momentos seriam esses?
A melhor história foi fazer a final da Taça de Portugal feminina, fui como assistente, foi subir a escadaria do Jamor e receber a medalha. Tive muitos momentos bons, mas mesmo com o estádio particamente vazio, mas é o Jamor, é a Final da Taça. Foi apitar a Super Taça Sequeira Teles, foram os que me orgulharam mais. A pior, fui agredida, levei uma cabeçada de uma jogadora, foi mais a dor psicológica do que a dor física e foi um momento que negativamente me marcou muito, não estava à espera, ninguém merece ser agredido.
Olhando agora para estes dois anos que faltam se pudesse escolher o momento ideal para coroar a carreira, como é que gostaria que fosse esse momento?
Eu gostava de fazer a Super Taça feminina que ainda não fiz, gostava de fazer um jogo no meio, sem ser quarto árbitro. Mas o que eu queria mesmo era sair na primeira divisão, vai ser difícil esta época e a próxima, mas vou terminar no nacional que é um dos meus objetivos, mas pretendo continuar ligada à arbitragem, não quero despedidas, vai custar muito.
Uma das coisas que eu quero deixar vincada é que, tenho sentido muito carinho das pessoas com a minha subida, não estava à espera. A arbitragem é sempre o parente pobre, mas eu senti, neste último mês um carinho muito grande, principalmente das pessoas aqui da região.
Isso é importante, é motivante?
É, fico feliz porque torna a arbitragem nobre, ou o orgulho das pessoas por ser da terra, independentemente de ser o árbitro. Quase nunca se vê ninguém a valorizar os árbitros. Fiquei muito sensibilizada.
Sente-se um exemplo (não como boa ou má árbitra) mas como fonte de inspiração para outras miúdas, mais novas? Sente orgulho de pensar que alguém um dia pode dizer “eu via a Célia Santos a arbitrar e quis também eu arbitrar”.
Eu sou professora, e já fui dar formação a Mesão Frio, a Santa Marta, aqui na Régua, e já passaram por mim muitos alunos, e gosto muito de lhes mostrar o meu caminho. Não é fácil lá chegar, mas procuro sempre motivar mais as miúdas, mas eu queria ser esse exemplo, queria que houvesse mais árbitras aqui.
Uma pergunta um pouco provocatória, quando está na bancada, como adepta do seu clube, como reage perante a arbitragem da partida?
Eu não tenho clube, os miúdos perguntam, e eu respondo que sou dos árbitros. O meu clube são os árbitros, nunca estou na bancada para falar mal dos colegas.
Eu vejo alguns jogos aqui no Régua e em Santa Marta, e nunca ninguém me ouviu comentar sequer um lance. Uma das frases que digo muitas vezes é, “não comento arbitragens”.
Mesmo em casa sozinha, só com a Seleção Nacional sou capaz de dizer uma ou outra coisa, mas por uma questão de respeito do colega que está lá, porque sei o que custa. E como presidente do núcleo não me ficaria bem ter esse tipo de comportamento.
Já aconteceu, ajuizar um lance, que até foi decisivo, mas quando revê esse lance, pensa “se calhar fiz mal”.
Tive o curso de CF1 de primeira categoria, e nós no curso temos uma parte de analise de lances nossos. No jogo que fiz Fiães Benfica, deu na televisão, mas não vi o jogo, e um dos clipes que foi analisado foi o meu. E realmente tive muito mal, e só esta semana é que vi que a cor do cartão devia ser diferente, e custa um bocadinho. Porque ou estás atrasada, ou não estas no sítio certo para analisar da melhor forma, o assistente também não viu que afinal ela ia isolada.
Tendo essa consciência, o risco de errar é menor.
Sim e depois sabemos que se erras, porque ás vezes estas apitar para uma falta e já sabes que fizeste asneira, não ficar com a ideia naquele erro. Se ficas a pensar naquilo, o jogo recomeça, ainda estás e pensar e fazes outro erro. Um bom arbitro é aquele consegue adaptar-se ao jogo e superar essas pequenas falhas. Porque é tudo muito rápido, não tens tempo para pensar, nem para ver.